Mundial de Angola, 39 anos depois

 

                Um atraso de quase 40 anos até que a realização de um Mundial tivesse lugar em África. Angola foi o palco escolhido para receber o Mundial 2013, depois de ter visto fugir o Mundial de 1974. Contudo, a mesma decisão tomada para o mesmo espaço, teve diferentes intervenientes. Verifiquemos neste artigo as diferenças entre o previsto Mundial de 1974 e o confirmado Mundial de 2013.
 

Em 1974, África receberia pela primeira vez na história um Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins. ‘’Não nego a influência muito grande que esta viagem exerceu sobre o meu espírito. Voltei de África convencido que seria uma traição ignóbil à gente de lá e à obra de cá, pactuar com os grupos que por mero aventureirismo perturbam num ou noutro ponto restrito dos territórios de Angola e Moçambique’’. Disse-o Marcello Caetano em Abril de 1969, após a primeira visita às colónias africanas de um chefe de Estado lusitano, numa altura em que as forças angolanas da UNITA, MPLA e FNLA enfrentavam o exército português, na luta pela independência de Angola. Nem o prolongamento da guerra colonial fez o regime esquecer a ideia de retirar a bandeira portuguesa além-mar, sendo com este intuito que, cinco anos depois, Portugal se candidata a receber o 21º Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins, a ser realizado em Luanda (Angola), vencendo a candidatura atribuída pelo CIRH. Seria um Mundial em Angola, sem a selecção de Angola. Um Mundial em África, organizado por europeus.

                Constrói-se para a ocasião o pavilhão Cidadela Desportiva na capital da província então portuguesa, com capacidade para quase seis mil pessoas, verificando-se igualmente uma massificação da modalidade, como relata o actual vice-presidente da Federação Angolana de Patinagem, Kaissara: “o Campeonato Mundial que se iria realizar em Luanda em 1974 fez com que o Hóquei em Patins passasse a existir, na altura, em todos os bairros urbanos e suburbanos de Luanda, devido ao material (patins, sticks, bolas) que foi colocado no nosso mercado, no âmbito dos preparativos do evento”. Ao contrário do hóquei moçambicano dos anos ’70, em Angola a modalidade integrava negros e brancos, distribuídos na altura por 18 clubes filiados na Federação Portuguesa de Patinagem.
Estreia do pavilhão Cidadela Desportiva, em Luanda (1974)
 

                A 25 de Abril de 1974 dá-se a revolução dos Cravos em Portugal, a praticamente três meses do início do Campeonato do Mundo. Angola continua sob alçada lusitana, sendo o seu Governador, Santos e Castro, substituído pelo General Silvino Silvério Marques. O Cidadela já havia sido inaugurado com um torneio de Basquetebol e a um mês e meio do início da competição e Luanda era formalmente indicada como anfitriã. Contudo, como seria possível de equacionar um evento de exaltação do regime português anterior ao 25 de Abril realizado em uma das terras que provocaram a sua derrocada?
Luanda, 1974

                De facto, foi a guerra colonial a principal responsável pelo surgimento do Movimento das Forças Armadas (MFA) e, apesar das intenções de um dos homens fortes da Junta de Salvação Nacional, General António de Spínola, em manter a bandeira nacional em territórios africanos, nem alguns portugueses nem africanos, quiseram assim. Desta forma, tudo o que era tido como português em África, ia deixando de ser à medida que os dias após a Revolução iam passando. O assassinato de um taxista português a 10 de Junho de ‘74 em Angola foi prova de que a tensão entre portugueses e africanos iria crescer, sendo insustentável a permanência de lusos nos territórios colonizados.

               

                A poucas semanas do início do campeonato, as selecções da Argentina e de Portugal já se encontravam em Luanda. Jorge Vicente, atleta da selecção portuguesa em ’74, recorda os momentos vividos na capital angolana: ‘’nós já tínhamos estado quinze dias em Luanda. Estava-se a prever um Mundial com grande entusiasmo do povo angolano’’. No entanto, a nomeação de Silvério Silvino Marques para governador de Angola não foi do agrado de todos os elementos do MFA - nomeadamente o General Costa Gomes, fundamental na manobra revolucionária – estando os mesmos em conversações com as forças angolanas do MPLA para criar um tumulto de grande dimensão que pusesse em cheque o governador. O Mundial de Hóquei era propício. ‘’Um representante do Dr. Agostinho Neto (MPLA) alertou-nos para a possibilidade de um grande conflito armado na cidade de Luanda. Estava a preparar-se a realização do Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins e já havia muitos estrangeiros na cidade. Ele anunciou que haveria um movimento, a partir de homens radicais de direita, brancos e negros, no sentido de desencadear a violência", referiu o professor Nuno Grande, um dos homens ligados ao governo português em Angola.
 

                Perante uma situação tão delicada, o General Silvério Silvino Marques transfere a competição para Lisboa, a poucos dias da sua realização. "A cidade (Luanda) entrou num grande desequilíbrio e em Julho já havia um êxodo muito grande, as pessoas já estavam todas amedrontadas com a confusão’’, afirmou o professor Nuno Grande. Deste modo, a organização da prova teve de, em poucos dias, disponibilizar todas as condições para a realização de um evento que nos tempos que correm demora meses a ser organizado. As palavras de Jorge Vicente reflectem bem o clima de surpresa: ‘’tivemos que regressar (a Lisboa) um pouco à pressa’’. Com apenas um dia de atraso em relação ao previsto, o Mundial acabou por se realizar em Lisboa, conquistando Portugal o seu 11º título.

 

 

                Hoje Portugal conta com mais quatro títulos mundiais. Regressa a Angola para disputar um Mundial feito por angolanos e em que existe uma selecção angolana, ao contrário de ‘74. Entre 1974 e 2013, deparamo-nos com realidades bem diferentes. O 41º Campeonato do Mundo organizado por Angola contará com dois pavilhões, um em Luanda (12.000 espectadores) e outro em Namibe (3.000 espectadores), em 1974 era apenas o Cidadela com capacidade para 6.000 espectadores. O investimento total da competição ronda os 170 milhões de euros, algo nunca visto até hoje no Hóquei em Patins. 16 selecções disputam o Mundial em 2013, mais quatro que em 1974, sendo que todos os jogos serão transmitidos via internet, com a RTP (Portugal), a TPA (Angola), a Teledeporte (Espanha) e a RAI Sport (Itália) a transmitir pela televisão a partir do dia 20 de Setembro. A 19 de Julho apenas a rádio iria lá estar. No 41º Mundial teremos 15 atletas a representarem selecções de países onde não nasceram. No 21º as naturalizações eram tema tabu.

 

 

                Muitas diferenças, o mesmo espaço, Luanda. Diferentes meios para os mesmos fins, a afirmação de um povo colonizador em 1974 e a afirmação de um povo outrora colonizado em 2013. 39 anos depois, o hóquei e a política voltam a estar ligados e 39 anos depois, voltam a completar-se um ao outro. O Mundial 1974 que era de Luanda marcou o início do fim do regime político (aquando da candidatura à organização da competição) e da bandeira portuguesa em África, já nas vésperas da sua realização. 39 anos depois, o Mundial de Angola marca o fim do início. Finda assim uma década de reconstrução desportiva e social após a guerra cívil, dando início a uma era que se prevê de afirmação e expansão do povo e do hóquei angolano, na sua vertente desportiva mas também organizativa e social.